quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Segurança Ocupacional - Trabalhos de limpeza



http://youtu.be/Pg598dypJk8

M. de Vandermonde Essay 1751

“J'ai pensé qu'en arrêtant d'abord le lecteur par des objects nouveux & amusants, qu'en passant par le sentier de la beauté, il arriveroit sans peine à celui de la science” M. de Vandermonde Essay... 1751


« Jacques- François Vandermonde chegou no dia 19 de Maio de 1723 a Macau, onde a Medicina ocidental quase não era conhecida, para assumir o cargo de “Físico e Cirurgião do partido desta cidade”. Nativo de Landrecies, na Flandres francesa, recebera o grau de médico pela faculdade de Rheims em Agosto de 1720, pouco tempo antes da sua partida para o Extremo Oriente. Encontrava-se em Cantão, onde era médico da Companhia Francesa das Indias Orientais, quando recebeu o convite para a dupla posição em Macau em Março de 1723. Recebeu por este posto um salário de 500 patacas anuais, tratando dos pobres sem cobrar honorários e mantendo a sua própria farmácia, a partir da qual deveria fornecer medicamentos “ pagos razoavelmente”[1]. Manteve a sua prática em Macau durante 6 anos, sendo extremamente elogiado por alguns dos doentes e vivamente criticado pelos outros Entre os primeiros encontrava-se o Jesuíta Polycarpo de Sousa, que declarou que, ”abaixo de Deus”, devia a sua vida a Vandermonde, que o curara quando se encontrava gravemente doente em Macau em 1726. Quando os principais conselheiros da cidade decidiram despedir o médico, em Julho de 1729, fizeram-no em parte devido ao seu suposto mau comportamento para com as doentes, incluindo as freiras franciscanas do Convento de Santa Clara, “a quem se dirigia com palavras muito feias e indecentes”. Jacques-François protestou contra a sua demissão, e foi apoiado pelo vice-rei de Goa, que lhe concedeu a nacionalidade portuguesa e ordenou ao Conselho que o readmitisse. Esta disputa chegou até Lisboa, onde a Coroa também tomou o partido de Vandermonde. No entanto, o Conselho Municipal ignorou estas ordens, e conduziu ao posto um médico português que receberia apenas 150 taels anuais. Durante este tempo, Jacques-François Vandermonde contraíra matrimónio com uma macaense de origem portuguesa, a menina Esperança Cecília de Cacilhas, que lhe trouxe como dote apenas a beleza e o apelido nobre[i]. Não conhecemos a sua linhagem com precisão; mas somos levados a crer que Esperança Cecília já teria sangue misto europru e saiático pelo que escreve um contemporâneo do filho, “era ele mesmo oriundo de um desses cruzamentos [inter-raciais] e belo homem[ii]”. O casal teve, portanto, um belo filho. Charles-Augustinde Vandermonde nasceu a 18 de Junho de 1727. Tendo perdido a esposa numa idade imprecisa, Jacques-François regressou a Paris com o seu jovem rebento em 1723, vindo a falecer em 1746. Charles-Augustin Vandermonde foi educado pela família de Jessieu; e, na vida adulta, tornou-se médico e Professor da Faculdade de Medicina de Paris, bem como censor real, editor do Journal Général de Mèdicine, autor de um Dictionnaire de Santé (1756), amigo de Des Malesherbes e uma figura menor do Iluminismo; até que, em 1762, a sua carreira promissora foi subitamente interrompida por uma doença súbita e fatal[2]. De entre a obra que nos deixou, destaca-se o curioso Éssay sur la mannière de perfectioner l'éspece humaine, inicialmente publicado em dois volumes em 1751, quando era regente da Faculté de Médicine de Paris, onde o autor defende os casamentos inter-raciais como forma de tornar os filhos mais belos que os pais. Qual foi a importância do Éssay para o Iluminismo? Embora de uma forma subtil e discreta, todo o livro, aparentemente composto como um panegírico às ideias do Conde de Buffon sobre a reprodução, fazia, de facto, a apologia do casamento inter-racial como forma de embelezar a espécie humana. Mais ainda, fornecia uma explicação científica, uma vez mais fortemente apoiada nas ideias de Buffon sobre as moléculas orgânicas, para o facto de serem esses casamentos (que, à época, apenas os Portugueses praticavam em larga escala, como parte integrante da sua política colonial) aqueles que logicamente produziam os melhores frutos. Exactamente no momento em que o racismo começava a ter os seus primeiros advogados “científicos”[3], a voz de Vandermonde foi a primeira a levantar-se contra a maré crescente, criando uma comoção em Paris que muito deliciou os philosophes[iii] que a observaram. Assim sendo, no resto desta apresentação vamos deter-nos cuidadosamente sobre os conteúdos do Éssay, e especialmente na forma como, sem qualquer arte retórica, Vandermonde leva o leitor ao que, no fim, não pode ser mais do que a validação científica da inter-racialidade humana. Louvando constantemente a sabedoria de Buffon, Vandermonde chama a si a tarefa de servir o Conde como divulgador das suas ideias, tornando-as de digestão mais fácil para todos aqueles que não possuam suficiente instrução para ler o Mestre directamente. E assim, muito apropriadamente, abre o Éssay escrevendo que a maioria das matérias aqui apresentadas são “directamente inspiradas pela História Natural de M: de Buffon, cuja experiência e visão animam os meus princípios”[iv]. O sistema utilizado pela Natureza para a reprodução, obviamente um andaime crucial para qualquer discurso relacionado com cruzamentos selectivos, era na época motivo de disputa acesa. A doutrina da Preformação tinha perdido bastante terreno, mas continuava viva. A Epigénese tinha sido ressuscitada das suas próprias cinzas por Caspar Wolff, e tinha agora um número considerável de seguidores. As massas educadas do Continente, no entanto, pareciam preferir as ideias de Buffon, e do seu colaborador Jesuíta inglês John Tuberville Needham, que abandonavam tanto ovos como espermatozoides e repescavam a teoria hipocrática da “mistura das duas sementes” (o sémen masculino e os fluidos vaginais femininos segregados durante a cópula) para formar o embrião. Buffun fôra um leitor atento dos Principia de Isaac Newton, e traduzira a obra para Francês. Sob esta influência, o cenário do Conde apresenta-nos as partículas orgânicas das duas sementes, depois de misturadas, a serem organizadas e acordadas para a vida por uma moule intérieure que o autor compara à força gravitacional de Newton. Para começar, vamos considerer a descrição que Vandermonde nos dá das observações de Buffon relativas a sémen visto ao microscópio: “[Buffon]Viu qualquer coisa que olhos menos iluminados teriam considerado vermes, mas compreendeu que estava a observar partículas vivas, a que chamou partículas orgânicas, pois que lhe pareciam serm os rudimentos da organização do corpo[v]”. Tenco chegado a esta conclusão, expluica-nos Vandermonde, Buffon calculou que as fêmeas também possuissem um qualquer “licor prolífico” desta natureza. “Viu qualquer coisa que olhos menos iluminados teriam considerado vermes, mas compreendeu que estava a observar partículas vivas, a que chamou partículas orgânicas, pois que lhe pareciam serm os rudimentos da organização do corpo[vi]”. Note-se, a este propósito, que a compreensão que Vandermonde possui do “sistema do ovo” é, no mínimo, pouco clara. Esta falta de precisão pode ser tomada como um bom exemplo da compreensão das diferentes filosofias reprodutivas que o homem de conhecimento médio possuía na época. Por exemplo, Vandermonde diz que “Fabricius d’Acquapendente, Aldrovandi, e finalmente William Harvey, pretenderam que todos os animais vêem de um ovo, e que os primeiros ovos criados continham todos aqueles que existiram e existirão no Universo.[vii]” Ora, é verdade que algumas observações, sobretudo as de Fabricius, e subsequentemente de Harvey, levaram este último a postular, no seu Exercícios de Geração Animal (1651), que “tudo quanto é vivo provém de um ovo”. Mas, por outro lado, o conceito de que os “primeiros ovos criados continham todos aqueles que existiram e existirão no Universo”, não derivou de Fabricius ou Harvey, mas sim da Preformação. E esta é uma teoria da reprodução que começou a emergir em 1674, depois de tanto Fabricius como Harvey terem morrido. Além disso, Harvey apresentou-nos a primeira defesa coerente da Epigénese, a maior inimiga científica da Preformação. Ou seja, no seu esforço de divulgação, Vandermonde consegue apresentar duas teorias em conflito como se fossem uma só, e fá-lo numa só frase! Tendo, assim, questionado já “o sistema do ovo”, Vandermonde aproxima-se ainda mais de Buffon ao rejeitar a possibilidade de os animais virem não de ovos, mas antes dos espermatozoides. Esta proposta tinha sido posta à discussão desde que, na segunda metade do século XVII, alguns microscopistas distintos, tais como os Holandeses Leeuwenhoek e Hartsoeker, desenharam as primeiras figuras de espermatozoides observados através das lentes. Como é evidente, Vandermonde não aceita semelhante heresia: “Tal como alguns insectos que apenas se transformam em tal quando deixam de ser vermes, alguns [Leeuwenhoek e Hartsoeker] acreditam que os vermes [espermáticos] foram os primeiros germes da nossa vida, tal como depois da nossa morte são instrumentos da nossa destruição. Ficámos reduzidos a pequenos vermes, e a nossa existência era reduzida a uma triste metamorfose![viii]” Passando à segunda parte do andaime científico necessário para a validação do casamento inter-racial em humanos, Vandermonde lida depois com a hereditariedade, que no seu tempo constituía ainda uma grande interrogação para aqueles que, como Réaumur e Maupertuis, tinham conduzido as primeiras experiências para testar a transmissão de traços parentais à progenia em famílias humanas. “As pessoas com problemas tais como a gota não deveriam ter filhos de todo”, porque “o germe da gota é transmitido ao feto, e a criança nasce com o corpo encolhido e os membros deformados” – o que não é nada comparado com a tragédia que ocorre sempre que “nasce uma criança cega de um casal com boa visão”. A explicação de Vandermonde é a seguinte: “Para encontrarmos o primeiro germe destes vícios, temos que recuar várias gerações”, uma vez que estes “vícios” tendem a tornar-se hereditários, “mesmo que não se expressem em todas as gerações[ix]”. Na mesma passagem Vandermonde mostra preocupação pela ideia de o hibridismo poder ser disfarçado numa geração e só reaparecer na seguinte. Este é um dos momentos do Éssay em que o autor aproveita a ocasião para aplaudir os casamentos mistos, fazendo notar a importância da geografia na distribuição da beleza: na sua opinião, as cidades marítimas são aquelas que sempre tiveram os povos mais belos e talentosos, porque atraem muitos estrangeiros de raças diferentes, permitindo assim que as raças inicialmente feias vão melhorando os seus traços. A este propósito, o autor faz-nos ainda recordar que os Judeus são “proibidos pelas suas leis” de se casarem com estrangeiros, “e essa pode ser a razão física que causou a degeneração desse povo”. Uma mudança para melhores climas pode sempre melhorar as coisas, já que “há pais feios que conseguem ter filhos bonitos[x]”. Com estas peças preliminares do andaime estabelecidas, o autor embrenha-se numa longa discussão de o que faz os humanos mais ou menos bonitos. Começamos com o argumento introdutório de que “a beleza dos homens não passa de um reflexo da beleza que o Criador dispersou por todo o Universo. A ordem, o arranjo, a proporção, a simetria, todas são Seus trabalhos (...). A proporção e a simetria são os primeiros requisitos da beleza (...). Foi seguindo esta lei da natureza bela que os melhores arquitectos construíram os edifícios mais sublimes”. E, claro, “se não consultarmos o retrato da Natureza (...) perdemo-nos e tornamo-nos vítimas do péssimo gosto[xi]”. Como exemplos deste “péssimo gosto”, o autor oferece um inventário, incluindo os pés pequenos das mulheres chinesas, as cinturas finas das mulheres franceses, as orelhas pequenas dos etíopes e as orelhas gigantescas de alguns índios sul-americanos, ou os dentes pretos das mulheres indianas. Baseado neste princípio, advoga o que poderemos considerar um primeiro esboço de eugenia: as pessoas bonitas devem casar-se umas com as outras, para que os seus filhos sejam ainda mais bonitos, e assim por diante. Este programa, na opinião do autor, constitui um argumento de grande peso na rejeição dos casamentos combinados entre famílias. Enquanto outros factores pertinentes no serviço prestado à beleza humana, Vandermonde defende seguidamente que os monstros nascem em consequência do desrespeito dos seus pais pelos tempos adequados para proceder à procriação, insistindo que os Antigos já estavam cientes deste problema, ao ponto de escreverem fábulas para a sua ilustração: “Imaginaram que Júpiter, excitado pelos vapores do néctar que o inebriara, decidiu dar à sua esposa as marcas do seu amor, e que Juno deu à luz Vulcano, esse monstro que não era nem deus nem humano, e que Vulcano foi expulso do Olimpo por ser o fruto da imprudência do seu pai[xii].” Esta imprudência inclui casamentos entre pessoas demasiado afastadas pela idade: “Se os esforços repetidos do velho esposo levarem ao nascimento de uma criança, o que não devemos temer deste acopulamento bizarro[xiii]?” Também devem ser evitados os casamentos entre crianças impúberes, destinados apenas a aumentar a fortuna dos pais. “As vítimas desafortunadas da ganância dos seus pais tornam-se os autores da sua própria destruição, e se algum dia derem à luz crianças será apenas para transmitirem a essas crianças todos os tipos de enfermidades que as levarão à morte[xiv]”. Postas todas estas considerações que adornam o seu andaime, Vandermonde apresenta-nos finalmente a sua própria teoria da reprodução – e, uma vez mais, fá-lo com o repetido protesto de que não está a fazer mais do que simplificar as ideias de Buffon para os leitores menos educados. Segundo o autor, tanto os fluidos masculinos como os femininos estão cheios de infinitas moléculas orgânicas. O calor que precede a cópula leva à formação de espirais destas partículas dentro dos orgãos genitais de ambos os sexos (note-se o toque cartesiano). Estas espirais são específicas para cada espécie, o que quer dizer que só podem ligar-se a moléculas oriundas da mesma espécie a que aquele organismo pertence; e só são produzidas nos orgãos genitais. Ligam-se umas às outras durante a cópula, reconhecendo pontos de ligação precisos de outras moléculas lançadas para a mistura – exactamente como um anticorpo reconhece o seu epitopo na superfície de qualquer célula. Uma vez que as moléculas masculinas são mais activas que as femininas (esta ideia já vem da Antiguidade Clássica), se forem as primeiras a ancorar umas nas outras a progenia é masculina. Se, por alguma razão, as moléculas femininas se formarem primeiro, e portanto se ligarem primeiro, a progenia é feminina. Quanto mais estreita for a ligação entre as moléculas, mais forte será o animal, porque “devem existir patamares de precisão infinitos na forma como estes corpos minúsculos se ligam uns aos outros”[xv]. Para Vandermonde, este sistema das partículas que se ligam a partir das espirais masculinas e femininas explica um bom número de mistérios hereditários. Descendência que nasce vesga, zarolha, ou coxa, vem certamente de um progenitor que apresenta o mesmo defeito, que se manifesta nas suas partículas orgânicas, e, desta forma, as torna incapazes de produzir uma composição correcta durante a mistura. Se a mãe for coxa, as partículas orgânicas das suas ancas terão uma conformação deformada; por isso, não conseguirão uma ligação correcta com as partículas normais do pai. Isto manterá a deformação de linhagem em linhagem, até as moléculas deformadas da mãe já estarem tão diluídas que as partículas do pai se sobrepõem – o que pode acontecer depois de um número variável de gerações. Tendo compreendido o sistema de Vandermonde, somos seguidamente convidados pelo autor a considerarmos uma forma de aperfeiçoar a espécie humana até um nível nunca antes atingido. Há já muitos séculos que aprendemos, e fomos dominando cada vez melhor, a arte de cruzar selectivamente os animais domésticos por forma a obtermos os melhores cavalos de corrida, as melhores vacas leiteiras, os melhores cães de caça, e assim por diante. Para o conseguirmos, limitámo-nos a manipular as características e atracções das suas partículas. Por que não fazer o mesmo com humanos? Se um dos parceiros de cópula for demasiado baixo, demasiado forte, ou demasiado grande em relação ao outro, as espirais encontrarão dificuldades sérias na sua combinação; e esta falta de precisão na combinação das partículas vai roubar elegância à composição final. O mesmo se aplica aos cruzamentos entre espécies. Por exemplo, é evidentemente muito difícil para a égua e para o burro conseguirem combinar os seus fluidos para formar a mula. Mas, devido a distribuições aleatórias de moléculas e de pontos de ligação que Vandermonde estima necessitarem ainda de muitos anos até estarem devidamente estudadas, o resultado “monstruoso” destas aventuras pode até revelar-se útil para o homem: a mula é indiscutivelmente mais forte que o burro e que a égua. Isto deve acontecer porque, por acaso, as partículas orgânicas de burros e de éguas se ligam umas às outras de forma especialmente forte. E não poderemos dizer o mesmo dos mulatos? Não são eles quem, geralmente, executa as tarefas físicas mais pesadas? Então deve ser porque, por acaso, a ligação entre partículas de brancos e negros também é de uma força acima da média. Daqui vem a conclusão do autor: se queremos filhos fortes e bonitos, devemos procurar progenitores com semelhanças físicas no tamanho, força, e outras qualidades corporais, independentemente das raças humanas usadas na mistura – uma vez que, como exemplificado pelo mulato, estas misturas são viáveis e podem até melhorar a espécie. Como nota final, saliente-se que, de acordo com Vandermonde, o único factor que poderia ser suficientemente poderoso para destruir ocasionalmente este caminho para o embelecimento progressivo de todos os povos seria a interferência das famigeradas impressões maternas: pensamentos, actos, ou observações, por parte da mulher grávida, que vão imediatamente do cérebro dela para o corpo do feto, transformando assim este último num qualquer tipo de monstro. Ou seja. O homem que quer trazer a beleza absoluta à humanidade através de um plano ultra-revolucionário para a sua época (o casamento inter-racial) é o mesmo homem que permanece assombrado por um folclore então já em declínio (as impressões maternas). Defendendo esta crença milenária, com raízes na Antiguidade Clássica e tributária de repetidos retoques coloridos ao longo dos tempos, Vandermonde reclama que as mulheres são “o depósito de um fruto precioso, devendo suportar as suas dores e sustentar a sua vida”; e devem, portanto, tomar precauções acrescidas durante a gravidez. “Uma mulher grávida não deve fazer um único movimento que não seja ditado pela razão. A sua alimentação, o seu sono, o seu trabalho, todos devem contribuir para a formação da nova criatura. Até o ar que respira pode transformar-se tanto na comida como no veneno do feto, e [a mulher] deve impedir as suas paixões e distanciar-se das atracções da sua imaginação desenfreada”[xvi]. Ou seja, a plenitude física só se atingirá se as mulheres forem sempre mantidas sob escrutínio severo. Um final perfeito para uma bela teoria da perfeição. [1] Padre Manuel Teixeira Macau no séc. XVIII, pp. 257-258 [2] Charles R. Boxer, A note on the interaction of Portuguese and Chinese Medicine at Macao and Peking (16th -- 18th Centuries), in Opera Minora, pp. 204-205 [3] Para um bom estudo do desenvolvimento do pensamento racista cientificamente fundamentado ver Gould, A Falsa Medida do Homem, 2004. [i] Dictionnaire, p. 475. [ii] Idem. [iii] Voltaire, Letters from England, p. 43; tal como citado em Ovary of Eve, p. 245. [iv] Essay, p. 4. [v] Idem, p. 7. [vi] Idem. [vii] Essay, p. 11. [viii] Idem, p. 13. [ix] Ibidem, p.14. [x] Idem. [xi] Ibidem. [xii] Ibidem. [xiii] Ibidem. [xiv] Ibidem. [xv] Essay, p. 18. [xvi] Idem, p. 15. .»


C. P.C.

Lambchop - Life's Little Tragedy



I desire to tumble
I walk through the garden
I don't speak well i mumble
To life's little tragedy
If you touch me i crumble
This song's from the wishing you well
Not a boob or a bungle
Just another butt to sniff
Half our lives surmise
For only you to decipher
Our reasons are quite tame
One by one we die
And our secrets die within us
There's no one left to blame
(shame on me, shame on you)
Scratchy cheeks and an earring
I scurry to find the camera
He's not angry he's seething
My pictures always turn out wrong
He's not crying he's teething
The pains of growing are going fine
There's some spit on the ceiling
Pretty soon it's going to drop
In the bed you lay
Praying for sleep and it never comes
It never works that way
All the rest is done
All you really can do is just sit up
And start a brand new day
(shame on me, shame on you)

http://youtu.be/CVujHArBqeI

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

A visita ao estúdio



João Ricardo zeigt sein Atelier in Viana do Castelo (Portugal) und präsentiert einige seiner neuesten Musik-Skulpturen.
João Ricardo mostra seu estúdio em Viana do Castelo e apresenta algumas das suas mais recentes esculturas musicais.
João Ricardo shows his studio in Viana do Castelo (Portugal) and presents some of his latest musical sculptures.

http://youtu.be/ASOJtcrgTUc

Esculturas sonoras



http://youtu.be/sMe6gCPxQPE

"Vi:Ela Sentada" no centro histórico de Guimarães



http://youtu.be/DWAp5hafgLU

Guimarães Capital Europeia da Cultura 2012



http://youtu.be/fpFDE6sDmfg

5ª Sound - Guimarães Capital Europeia da Cultura 2012



"João Ricardo Oliveira criou uma instalação plástico sonora em que os sons quotidianos das aves entre outros estranhos objetos sonoros são a base para uma formação orquestral. Do galinheiro, bebedouro, comedouro, poleiro, estrado e piano. João Ricardo Oliveira pretende extrair sons e tons, criando um discurso sonoros SÓnORA, diálogos e conversas pecuárias. O público é surpreendido e contaminado por uma performance sonora única."



http://youtu.be/h0ifZC4-zXU

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Andrew Bird - Give It Away



http://www.youtube.com/watch?v=pTaW-8ligDo&feature=related

NA FARMÁCIA DO EVARISTO

Fernando Pessoa

NA FARMÁCIA DO EVARISTO


 Era uma tarde de domingo. Acabara, na manhã desse dia, o movimento militar de 18 de Abril. Estava restaurada a ordem visível. Em todas as caras se via o aborrecimento e o mal-estar que a imprensa do dia seguinte havia de chamar "a alegria que se lia em todos os rostos", o que é possível num país onde tão pouca gente sabe ler. A farmácia do Evaristo, que estivera sempre aberta, começou a receber os seus estacionários do costume. A conversa misturou-se, simultânea e prolixa. A voz alta do Mendes, republicano democrático, erguia-se congratulatória. Nisto assomaram à porta os dois habituais que ainda faltavam. Um saudação geral os acolheu. O José Gomes, mais conhecido por o Gomes Pipa, entrou lentamente na farmácia. Das duas razões da sua alcunha, uma estava à vista no bojo formidável da sua corpulência. A outra, se alguém a quisesse saber, sabê-la-ia logo nas palavras que vinha dizendo, Acompanhava-o o Justino dos coiros. O Gomes vinha limpando a boca. — Já tenho bebido melhor... — Pois sim, mas não é mau... — Não, mau, mau não é... — Aqui este tipo defronte — pena é estar fechado — é que tem um vinho branco...! Então já está tudo sossegado? —Tudo, disse o Mendes. — E o amigo Mendes contente com o restabelecimento da ordem, ham? — Pois é claro... — E com a conduta das tropas fiéis — isto é, fiéis àquilo a que foram fiéis?... — Àquilo a que foram fiéis? Ao governo, que é a quem tinham obrigações de ser fiéis. Ao governo, a ordem, à disciplina, às instituições! Portaram-se bem. mas não fizeram senão a sua obrigação. — Folgo muito, Sr. Mendes, disse o Gomes sentando-se num banco e puxando pela bolsa do tabaco; folgo muito, como amigo da ordem, em vê-lo apreciar devidamente a fidelidade ao dever jurado e à obrigação militar. — Não vejo razão para folgar tanto! Como não pode haver dúvida que eles fizeram bem cumprindo o seu dever de militares, e até de cidadãos, não é de estranhar que se ache bem que eles o cumprissem... - Sim, senhor, respondeu o Gomes Pipa. Mas não é só por isso que eu folgo com o seu aplauso a eles e com o seu justo apreço da fé jurada e do dever militar. Folgo sobretudo, como monárquico, com a condenação, que com isso o sr. fez, da revolução e dos revolucionários do 5 de Outubro. — Hem? O quê? Do 5 de Outubro? O Gomes enrolou lentamente o seu cigarro vulgar. — Sim, do 5 de Outubro. Os militares e marinheiros, que no 5 de Outubro se revoltaram, tinham jurado, como estes, manter a ordem e defender as instituições, que eram então as monárquicas. E como estes fizeram bem mantendo-se firmes ao seu juramento e ao seu dever militar, aqueles fizeram mal faltando ao deles. É com esta sua opinião que eu folgo. Estimo-a pela imparcialidade, vindo, como vem, de um republicano. — Perdão... Não é nada disso... O 5 de Outubro é um caso diferente.. — Diferente? Diferente em quê? — E o Gomes suspendeu calmamente o acendimento do seu cigarro. — No 5 de Outubro a revolução nasceu de um impulso nacional, correspondeu, por assim dizer, a um mandato imperativo da nação inteira, ou, pelo menos, da sua enorme maioria. Tanto assim que o movimento venceu com facilidade, e com torças aparentemente insuficientes... — O ter vencido com forças aparentemente insuficientes não é argumento, meu amigo. Num país que não está numa situação brilhante de disciplina e de ordem, corno então acontecia, e com um governo fraco ainda por cima, um movimento revolucionário, desde que passe de uni simples motim, facilmente vencerá, pela repugnância que há em combater compatriotas, e pela falta de hábito em fazê-lo, para que se vença essa repugnância. Deixemos isso da vitória fácil... Ou o sr. pretende basear na facilidade dessa vitória o único argumento a favor do carácter nacional do 5 de Outubro? Se vamos a isso, com muito mais facilidade venceu o chamado "movimento das espadas", com que foi ao poder o Pimenta de Castro, sendo portanto consideravelmente mais nacional. — O movimento das espadas foi um movimento exclusivamente militar, tomou toda a gente de surpresa... — Exactamente. É isso que eu digo... Basta tomar de surpresa, apanhar os outros sem preparação condigna para vencer, sem que a vitória representa mais que os outros não estarem prontos... — Espera lá: não é só isso... O movimento das espadas, repito, foi exclusivamente militar; no 5 de Outubro entraram muitos civis... — Isso quer dizer simplesmente que havia civis que estavam na conspiração, e, se estavam, é natural que viessem para a revolução também. E quanto a outros quaisquer, logo que os armassem, porque não entrariam?... Mas eu não nego que o partido republicano tivesse em 1910 partidários bastantes para poderem entrar bastantes civis na revolução... O que nego é aquilo em que o sr. pretende basear a sua justificação da traição e da aleivosia dos militares e marinheiros (para não falar nos civis) que entraram na revolução de 5 de Outubro. O sr. diz que essa traição se justifica pelo facto de o 5 de Outubro ser um movimento nacional, uma espécie de mandato imperativo da nação. E o sr. não me citou argumento nenhum que provasse esse carácter nacional do movimento, nenhum argumente pelo qual esse movimento se distinga de qualquer outro movimento em que entrem militares, faltando à sua obrigação e ao seu juramento, e civis, porque estavam combinados para entrar ou foram armados para que entrassem. O próprio facto, que o sr. citou, de o movimento ter tido poucas forças — de aí, diz o sr. o ser de pasmar que ele vencesse, mas eu já lhe expliquei isso —, o próprio facto, repito, de o sr. dizer que o movimento se fez com pouca gente não é com certeza a melhor maneira de provar que ele representasse um mandato imperativo da nação, ou uma aspiração nacional a realizar-se. — Talvez, Sr. Gomes, eu me exprimisse mal... Exprimi-me mal, com certeza... É atmosfera, o ambiente, do movimento que provaram bem o seu carácter nacional... - Oh, amigo Mendes, isso não serve... Reduza lá isso das atmosferas e dos ambientes a qualquer coisa mais visível. Há-de haver por força sinais evidentes, distintivos, de se um movimento é nacional ou não. Essa atmosfera, esse ambiente, hão-de reflectir-se em qualquer coisa de concreto, de palpável... Refere-se o sr. por acaso à circunstância, que na verdade se deu, de o movimento ter sido acolhido, em geral, com uma certa simpatia? — Sim, isso, por exemplo... O que é que isso prova senão que... — Prova que toda a gente tinha um medo medonho da revolução republicana, julgando, pela falta de prática de revoluções, que caíam este mundo e o outro quando uma revolução viesse... Em comparação com o que as imaginações aterrorizadas se figuravam do que fosse uma revolução, o 5 de Outubro, que realmente foi brando e limpo, foi um alívio, como o é sempre a realidade, ainda que má, quando a imaginação a figurava muito pior.. Essa própria sensação de alívio deve ter despertado em muita gente uma certa hesitação esperançosa... Mas isso tudo, amigo Mendes, são fenómenos posteriores à revolução, ambiente sobrevindo mas não preexistente... Os mandatos, salvo erro, precedem o acto a que compelem... Um ambiente que se segue não é um ambiente que precede... Continuo, pois, a não achar aceitáveis as razões que alega para considerar o 5 de Outubro um movimento nacional... — É difícil de explicar, realmente, mas... — Vamos lá a ver se com o meu auxílio o sr. consegue desencaixotar a sua lógica... Vamos a um facto concreto, que realmente pode alegar-se como justificação de se chamar nacional à revolução de 5 de Outubro... Esse facto é o de ter ficado e durado a República... — Ora exactamente, é isso mesmo. — Não é, amigo Mendes, não é... A República tem durado, sim; mas tem durado de uma maneira irregular, cortada constantemente por movimentos vários, monárquicos e outros, e em perpétua atitude de sobressalto, de defesa e de confusão. E como esses vários movimentos não têm sido motins vulgares, de rua, mas revoluções em forma, algumas vitoriosas, em que entram regiões inteiras do país (como na restauração monárquica no Norte) e grandes forças do exército e numerosos civis, tem havido, ao que parece, ambiente e atmosfera para os dois lados. De modo que nada autoriza a que afirmemos que o 5 de Outubro teve mais "carácter nacional" que qualquer outra revolução ou revolta. O impulso nacional seria indubitável se, proclamada a República, caíssemos em paz, sem mais agitações nem revoluções, ou, quando muito, com meros pequenos motins, episódicos e incaracterísticos... Mas agora reparo que nos afastámos do nosso caso original... Mesmo que o 5 de Outubro fosse um movimento classificável de "nacional", isso nada tinha com a questão da traição e da deslealdade dos militares e dos marinheiros que o fizeram... É esse, creio eu, o ponto que estávamos discutindo — Perdão, alguma coisa tem... — Que coisa? — A fidelidade ao juramento é realmente uma coisa importante. Mas há casos em que não é a mais importante de todas. Os interesses supremos da Pátria, que são o mais importante de tudo, podem prevalecer, se for preciso, sobre todos os juramentos e sobre todos os compromissos de fidelidade! — Ah, sim... É verdade: o Sr. foi germanófilo? — Eu?!... Eu germanófilo?!... Mas a que propósito?... — É que esse é o argumento de que se serviu von Bethmann Hollweg naquela célebre declaração em que chamou aos tratados "farrapos de papel". Os interesses supremos da Alemanha, sua pátria, estavam, disse ele, acima da fé dos tratados, isto é, do compromisso, ou juramento, escrito que um tratado representa... — Pois sim, pois sim... Mas um tratado é uma coisa diferente... — É apenas compromisso, ou juramento, escrito. O sr. naturalmente não vai sustentar a teoria de que é legítimo, por exemplo, a gente negar as dívidas de que se não possa apresentar documento?... Mas, enfim, isto não tem nada para o caso. O seu argumento pode ser germânico e válido: a Alemanha não está proibida, depois da guerra, de ter razão... Vamos ao argumento... Se é legitimo faltar ao juramento e é obrigação em favor e defesa dos interesses supremos da Pátria — e por interesses supremos da Pátria entende o sr. sem dúvida aquilo que os revolucionários pensavam ser os interesses supremos da Pátria porque não é legítimo nos actuais revoltosos, e em todos os outros que se têm revoltado durante a República, invocar o mesmo argumento? O sr. vê neste movimento, por exemplo, homens sérios e que se mantiveram sempre fiéis à defesa da ordem e do cumprimento da disciplina. Sirva de exemplo o tenente coronel Raúl Esteves. Para ele ter entrado neste movimento, tendo-se recusado sempre a entrar em qualquer outro dos vários para que constantemente o convidavam, o que sem dúvida pensou que a isso o compeliam os superiores interesses da Pátria. Não há, pelo menos, o direito de pensar o contrário, porque então se pode pensar o mesmo contrário dos revolucionários do 5 de Outubro. Não dou o argumento como legítimo para mim — para mim nada pode prevalecer sobre o juramento prestado —, mas dou-o como legítimo para si, visto que o emprega para defender os revolucionários do 5 de Outubro, pessoas de muito menos categoria e prestígio, aliás, que os chefes desta última revolta. — Perdão, sr. Gomes... Eu não nego, nem preciso negar, que pudesse ser boa a intenção dos chefes desta revolta. O que afirmo é que, se a sua intenção era boa, era ao mesmo tempo errada. E tanto era errada, tanto o movimento não correspondia a uma aspiração nacional, que se deu com ele, apesar de bem planeado, uma coisa que eu ia ainda agora objectar-lhe, mas que guardei para depois para o não interromper... É que este movimento foi sufocado; falhou... E a verdadeira prova da falta de ambiente é essa: falhar... — Tem graça: outro argumento germânico! — Outro argumento germânico? — Sim. Foi o filósofo alemão Hegel que inventou o argumento de que a própria vitória é a justificação da vitória, e que quem vence é que tinha direito a vencer, por isso mesmo que vence. É um argumento que andou muito em uso nos escritores militares e militaristas da Alemanha, e que tem um certo parentesco moral com aquilo de "a força supera o direito" que o (...) disse, atacando Bismarck, que podia ser a divisa dele. Mas enfim, aqui estamos no mesmo caso de ainda há pouco. Um argumento pode ser de Hegel e ser valido. O caso principal é outro. A vitória é que prova a legitimidade, o "ambiente" de um movimento? Está bem... Ora o Sidónio venceu... — E quanto tempo durou a situação do Sidónio, Sr. Gomes? — Durou até ao fim, como todas as coisas. Durou enquanto durou. Não durou tão pouco que isso pese como argumento, nem acabou senão porque, estando concentrada num só homem, uma simples bala, isto é, um só homem pode terminá-la. Mas, afinal, em que é que ficamos? O Sr. tinha-me dito que a vitória de uma revolta é que provava o seu ambiente. Eu já respondi em parte a isso quando respondi à sua alusão à facilidade com que o 5 de Outubro vencera; agora respondo de novo com a vitória do Sidónio. Mas o sr. fala-me agora, já não em simples vitória, mas em duração da situação criada pela vitória, o que é uma coisa diferente... Quanto tempo é que uma situação tem que durar para o sr. a considerar legítima? — Não é o durar, meu caro senhor, é e maneira de durar... — Também já respondi a isso... Já lhe disse que se a vida da República tivesse sido de inteira paz, se a vinda da República tivesse eliminado as dissenções importantes, se poderia com efeito considerar de carácter nacional o movimento que a implantou. Mas, como não sucede isso, mas exactamente o contrário. não vejo a que "maneira de durar" o sr. alude... O Canha das barbas, que, do lado, sentado contra o balcão, tinha estado a ouvir atentamente o decurso da conversa, interveio de repente, depois de tossir. — Dá-me licença, ó Gomes, o caso não é esse... Não se trata de maneira de durar nesse sentido. Se aqui o Mendes me dá licença que fale por ele, vou ver se ponho o caso mais a claro... Desde que se implantou a República tem havido, com efeito, vários movimentos revolucionários, de parte a parte, e, dos opostos à chamada "normalidade constitucional", alguns temporariamente vitoriosos. Mas, mais tarde ou mais cedo, tem-se sempre vindo a cair na linha original, isto é, na sucessão legítima dos governos republicanos, saídos de parlamentos que são eleitos, bem ou mal, segundo normas constitucionais assentes, comuns a todos os estados civilizados. Mais tarde ou mais cedo tem-se sempre vindo cair nesta "normalidade" constitucional; por isso se pode afirmar que os movimentos contra essa normalidade constitucional, falhados ou temporariamente vitoriosos, têm sido simples interrupções, sem carácter nacional. E tanto têm sido interrupções, que as situações criadas por eles, mesmo quando plenamente vitoriosos, acabam sempre por se extinguir com uma rapidez espantosa, como a situação dezembrista se sumiu pelo chão abaixo depois da morte do Sidónio. É isto, se me não engano, que o Mendes queria dizer quando se referia à "maneira de durar" dos governos republicanos constitucionalmente legítimos, e à pouca duração do regímen sidonista como prova da sua falta de carácter nacional, em comparação com esses outros governos. É isto ou não é, ó Mendes? — Exactamente, Sr. Canha, anuiu o Mendes; é isso sem tirar nem pôr. Ainda bem que falou por mim, porque eu não punha as coisas tão certas... — Está bem, disse o Gomes Pipa. Aquilo a que se chama normalidade governativa, seja ou não constitucional, assenta forçosamente em uma de três coisas ou na continuidade com a governação anterior ou na justificação eleitoral, ou na aceitação espontânea pelo país, haja ou não continuidade e justificação eleitoral. Pode assentar em mais que uma destas três coisas, mas pelo menos em uma tem forçosamente que assentar. E não há quarta coisa em que possa assentar. Ora agora, meus amigos, vamos lá considerar essas coisas uma a uma. Comecemos pela mais simples, visto que não importa por qual se comece, desde que se considerem todas. A mais simples, para o nosso caso, é a de investigar se há ou não aceitação espontânea, da parte do país, da situação republicana, ou seja dos resultados da revolução do 5 de Outubro. A isso já eu respondi. Se, vinda a República, o país tivesse caído em normalidade constitucional autêntica, isto é, em ausência de revoluções, de contra-revoluções e de pronunciamentos, tão importantes que alguns têm sido vitoriosos, haveria direito a supor a aceitação espontânea, pelo país, da situação republicana. Mas, como se não dá essa circunstância, a aceitação espontânea não só se não pode presumir, mas claramente se vê que não existe. Pode, ainda, alegar-se que esses movimentos vários são golpes de audácia, sem mais sentido que serem golpes de audácia. Para que isso se pudesse alegar com razão era, porém, preciso — primeiro, que essas revoluções e revoltas não fossem constantes, sendo portanto constante o estado de anormalidade, que é o contrário de normalidade, constitucional ou outra; segundo, que essas revoluções não fossem importantes, e muito menos vitoriosas de quando em quando, o que indica que têm consigo a massa ou força suficiente para, pelo menos naquele momento, terem mais massa e força que o governo; terceiro, se se quiser alegar que esses movimentos são simples de audácia felizes, que se não pudesse alegar precisamente a mesma coisa do 5 de Outubro, feito com muito menos forças que a maioria desses outros movimentos. Não há, portanto, aceitação espontânea, pelo país, da situação republicana, nem nada que de longe se pareça com essa aceitação espontânea. Vamos ver, agora, se haverá justificação ou pela continuidade com a situação governativa anterior, ou pela ratificação eleitoral. Comecemos pela consideração se há ou não justificação eleitoral. Ora as eleições em Portugal ou são uma burla, ou não são uma burla ou são às vezes uma burla e outras vezes não. Se são sempre uma burla, como crê a maioria da gente, desde que não esteja a mentir por obrigação partidária, então não há justificação eleitoral, e o argumento cai pela base. Se não são nunca uma burla, então são tão válidas as eleições do tempo do Sidónio como as dos períodos democráticos, sendo-o especialmente a formidável votação que elegeu o Sidónio, por sufrágio directo, presidente da República, e que foi a maior manifestação eleitoral que tem havido dentro da República. E, neste caso, o povo português é de uma volubilidade extrema e doentia, devendo ter a governá-lo, ou regímen nenhum, para haver correspondência governativa com essa volubilidade, ou um regímen monárquico ou ditatorial absoluto, para a refrear eficazmente. Se as eleições são às vezes uma burla e outras vezes não, como distinguiremos uma coisa da outra? Considerando, não só por observação directa que qualquer de nós pode fazer e tem feito inevitavelmente, mas também pelo número de revoluções de diversos tipos que tem havido, e que têm tido força bastante para se formar e às vezes para vencer, que o país se encontra dividido entre várias correntes políticas, entre as quais algumas bastante fortes, as eleições que foram menos burla serão aquelas em que a representação parlamentar se encontra mais dividida, em que os adversários da situação política se encontrem mais largamente representados, sobretudo se forem adversários do próprio regímen. Ora o único parlamento republicano onde houve uma larga representação monárquica foi o parlamento do Sidónio. Foi portanto esse o parlamento que, sem ser necessariamente eleito com absoluta seriedade, foi o que mais se aproximou dela. O Canha das barbas interrompeu sacudidamente. — Ora adeus, ó Gomes! Os monárquicos foram eleitos nessa proporção porque o Sidónio quis... — Se o Sidónio quis, isso quer dizer que não usou de burlas eleitorais contra eles, e é isso mesmo que eu pretendo provar — que foram essas eleições, sem serem boas, em todo o caso as melhores que tem havido durante a República. O Mendes interveio, encolhendo os ombros. — O Sidónio quis, mas não foi por espírito de justiça... Quis porque os monárquicos o apoiavam, e portanto não lhe importava nada que houvesse muitos no parlamento. — Óptimo, replicou o Gomes. Se os monárquicos não hostilizavam o próprio Sidónio, temos o ideal de um parlamento de "normalidade constitucional", em que ambas as correntes que o formam, embora entre si adversas, dão ambas apoio ao chefe do Estado. É um parlamento como o inglês, em que todas as grandes correntes, que o constituem estão de acordo na obediência e aceitação do Chefe do Estado, que ali é o Rei. — V. esquece (disse o Canha) que os velhos partidos republicanos se abstiveram de ir às urnas nessa eleição... — Exactamente como os monárquicos se abstiveram de ir às urnas nas eleições para as Constituintes republicanas, o que, por esse critério, tira todo o valor a essas Constituintes, que são o início "legal" da tal normalidade constitucional. Do canto da casa, onde sempre se anichava, o coronel Bastos, reformado e matreiro, meteu a voz suave e um pouco rouca no intervalo rápido da conversa. — Não sei porque é que o Sr. Gomes gasta tanto tempo com esse argumento, a pôr hipóteses e mais hipóteses... — Com qual argumento, coronel? — Com o da justificação eleitoral. Ninguém, que esteja falando inteiramente a sério e com lealdade pode apresentar esse argumento como legítimo. Está sabido e ressabido que as eleições em Portugal são sempre uma burla, e uma burla descaradíssima. Se aqui o Sr. Mendes ou o Sr. Canha viessem objectar esse argumento, equivalia a dizer que não tinham argumento nenhum. Compreendo que se queira justificar a existência da República por qualquer dos outros dois argumentos, que o sr. pôs como hipóteses, e uma das quais já refutou, mas pelo da ratificação eleitoral... francamente!... O Gomes sorriu e voltou-se para o coronel interruptor. - Bem vê, coronel, o dever do argumentador é expor e considerar todas as hipóteses, sejam ou não plausíveis. Se não são plausíveis, o argumento o demonstrará. É claro que estou de acordo consigo e que ninguém admite como legítimas as eleições que se fazem em Portugal. A minha obrigação de argumentador era, porém, supor que alguém as pudesse admitir a sério como legítimas e refutar esse hipotético alguém. De resto, deixe-me dizer-lhe, o argumento da justificação eleitoral e refutável de outras maneiras... — Por exemplo?... perguntou o Evaristo. — Por exemplo, este... Uma eleição é, ou pretende ser, uma expressão de opinião. Para que uma eleição seja, portanto, válida como expressão de opinião, é preciso que a opinião a reconheça como expressão de opinião. Ora ninguém em Portugal acredita nas eleições políticas como expressão de opinião, ou nos resultados delas como manifestando de alguma maneira a opinião, excepto no caso de alguns deputados das oposições, que têm realmente que ter consigo alguma opinião e apoio legítimo para poderem romper as malhas da rede eleitoral do governo. Ora se as eleições são tidas pela opinião de todos como não representando a opinião de todos, as eleições não são eleições e não há justificação eleitoral porque não há realmente facto eleitoral. E o constante apelo para as revoluções e para os pronunciamentos confirma isto decisivamente. Que querem dizer essas revoluções e esses pronunciamentos, no fundo, senão a falta de confiança na legitimidade dos resultados eleitorais, o reconhecimento, por toda a gente, que esses resultados eleitorais não são realmente válidos? E quando não queiram dizer isso, mas signifiquem simplesmente a vontade de saltar por cima dos resultados eleitorais, que quer isso dizer senão que não há respeito orgânico pelos resultados eleitorais; e que portanto um regímen ou situação política, para se justificar perante todos e ser tido geralmente por válido, tem que buscar outro apoio que não seja o das eleições? — Não há dúvida, disse o Evaristo. — Tudo isto, porém, continuou o Gomes, todos estes argumentos são dispensáveis. O verdadeiro argumento contra a justificação eleitoral por eleições das que caracterizam os regimens liberais é que essas eleições, mesmo quando feitas com seriedade moral, são organicamente uma burla política. — Ora essa! — exclamou o Mendes. — E porquê? — Em toda a parte, em todos os países civilizados, como disse ali o sr. Canha, as eleições, que custam muito dinheiro, que necessitam de uma propaganda insistente e hábil, de uma organização especializada, só podem ser efectuadas por organismos partidários para isso preparados, para isso habilitados, e dispondo dos fundos para isso. Assim é em Inglaterra, por exemplo, onde as eleições são, ao que dizem, moralmente limpas, e onde há uma antiga tradição representativa.. E se assim é em Inglaterra, onde as eleições são tão moralmente limpas quanto podem ser, em todos os outros países são de aí para pior. O facto é, porém, que, à parte um outro deputado independente, que, em geral, por uma questão de influência local — que pode, aliás, ser puro caciquismo, como se costuma dizer —, só os partidos organizados é que fazem as eleições e elegem os candidatos, dispondo assim, por fim, não da maioria, mas da enorme maioria ou quase totalidade da assembleia representativa resultante. O eleitor não escolhe o candidato; escolhe entre candidatos que lhe apresentam os partidos e, se embirra com todos, não vota, e os partidos ganham da mesma maneira. Ora os partidos são dirigidos e orientados por directórios, ou como quer que se lhes chame, nos quais prepondera a opinião de três ou quatro indivíduos, o máximo, e por vezes de um indivíduo só. No fundo, pois, o resultado de uma eleição política no regímen liberal — mesmo sendo essa eleição séria e moralmente limpa — é a imposição hipócrita da vontade de meia dúzia de indivíduos a uma nação inteira, que por vezes, em casos extremos de auto-sugestão, como na Inglaterra, chega a acreditar que tem vontade própria. E a assembleia "representativa", uma vez eleita, passa a funcionar sem fiscalização directa da própria "opinião" que a "elegeu", e a fazer, muitas vezes, exactamente o contrário do que prometeu nos comícios, e, outras vezes, coisas que, se não são esse contrário, são coisas que, pelo menos, o eleitorado não sancionaria, se as levassem perante ele. É em virtude disso que os conservadores ingleses — os conservadores, reparem! — chegaram a propor, para o caso de certas medidas graves, surgindo inesperadas, e que não haviam sido objecto das declarações nos comícios, o estabelecimento do princípio, aparentemente tão pouco conservador, do referendum. O Gomes parou um pouco, e aproveitou a própria paragem para puxar de novo pela bolsa do tabaco. — Os indivíduos — a tal meia dúzia ou dúzia de indivíduos, se não forem menos — que preponderam nos organismos partidários, e que portanto verdadeiramente governam o país, têm a sua responsabilidade nas situações políticas coberta e dispersa pela massa do partido a que pertencem, do eleitorado que compeliram a votar neles através do partido, e da assembleia "representativa" "eleita" por esse eleitorado. Exercendo realmente uma ditadura, exercem-na hipócrita e cobardemente, cobertos por uma massa partidária que, como é anónima, vem a ser praticamente ninguém; contraem portanto, com a índole despótica do ditador, a obliquidade moral que vem do sentimento da impunidade e alguns, se não todos os vícios que provêm do exercício constante do disfarce e da hipocrisia. E quando a isto se acrescenta que, para subirem nesses partidos até à situação de preponderância que neles têm, esses homens tiveram que servir os ditadores hipócritas que os precederam na direcção real desses mesmos partidos, vê-se que a índole hipócrita e a obliquidade moral, que seria natural que contraíssem no mero exercício da sua ditadura velada, já as haviam realmente adquirido antes, no serviço dessa mesma ditadura, pelo qual conseguiram chegar, por sua vez, a ser ditadores. Estes factos indubitáveis (continuou o Gomes, com uma certa animação) sofrem um certo paliativo nas nações mais instruídas e educadas, porque a própria hipocrisia do ditador velado lhe impõe limites nas doutrinas e processos que empregue; a relativa lucidez e atenção do espírito público espontaneamente se revoltariam se os ditadores velados quisessem pôr em prática medidas de profunda corrupção — sobretudo de corrupção visível — ou normas de onde derivasse um manifesto perigo para a nação ou para os seus componentes. O hipócrita tem que contemporizar. E de aqui resulta que aquelas vantagens que se costumam atribuir aos regimens liberais — citando a sua acção em países como a Inglaterra — não provêm realmente dos regimens liberais, mas da educação e instrução do povo, do seu activo orgulho nacional, da sua moral social relativamente elevada. A mesma educação, a mesma instrução, o mesmo orgulho e senso moral operariam do mesmo modo qualquer Que fosse o regímen, e não poderia pensar em ir contra ele um rei mais do que um ditador velado, considerando sobretudo que num caso a responsabilidade é directa e visível, no outro dispersa e ocultada. — Mas essa educação e esse orgulho nacionais, interveio o Canha, não serão, pelo menos em parte, produzidas por esse regímen liberal? — Não, respondeu o Gomes. Quanto à instrução, ela nasce e desenvolve-se com o desenvolvimento da civilização, que por sua vez promove; qualquer regímen, que reja uma nação civilizada, tem forçosamente que estimular e desenvolver a educação; porque o espírito público assim o exige e espera. Quanto à moral social, nenhum regímen a cria, porque não é essa a esfera de acção dos regimens políticos; a moral social, criam-na a família os indivíduos no seu simples trato social, as influências morais e religiosas. E quanto ao orgulho nacional, cria-o, em parte, o ser uma nação grande; o sentimento da independência, cria-o o ser uma nação ou ameaçada ou constantemente agredida, e assim por aí adiante... Mas, enfim, isto são notas à margem. Voltemos ao seu argumento primitivo. Creio ter demonstrado que, se não há justificação da nossa República pelo assentimento espontâneo do país, também a não há pela ratificação eleitoral. — Está bem, provou, concedeu o Canha. Mas ainda havia uma outra hipótese, se me não engano... — Havia... A terceira hipótese, que é a que falta considerar, é de que a República possa ter uma justificação da sua existência na continuidade com o sistema governativo anterior... O coronel Bastos desatou o riso. — Aí não é preciso argumento, disse. Se o que estava antes era a Monarquia, basta a República não ser Monarquia para não haver essa continuidade. — Sem dúvida, coronel... Mas um argumentador hábil complicaria um pouco mais a questão; e o meu dever é pôr as objecções, quando as ponho eu a mim mesmo, como se elas fossem postas por quem soubesse pô-las. A essência do regímen liberal — de qualquer regímen liberal — é a limitação do poder do Chefe do Estado, ou, antes, a sobreposição ao poder do Chefe do Estado, por uma assembleia emanada directamente (por aquele lindo processo que já expus) de um certo número de indivíduos inscritos em cadernos eleitorais, a que, não sei porquê, se chama "a nação". Dizendo melhor, a essência do regímen liberal é a transferência do poder para a tal "a nação", quer ela aceite o Chefe do Estado (que é quando, sendo rei, não é eleito por ela), quer ela eleja directamente o Chefe do Estado como no regímen republicano presidencialista, e assim nele delegue esse tal poder que em ela reside, quer eleja uma assembleia qualquer em quem delegue esse seu poder, e que depois, por sua vez, eleja o Chefe do Estado. Ora a República Portuguesa — a tal da normalidade constitucional — pode alegar em seu favor, isto é, em favor do seu carácter nacional, que realmente está em linha de continuidade com a essência do regímen liberal, salvo num pormenor — a chefia do Estado desse regímen. Mas, infelizmente para a República, este argumento também não serve. O Gomes Pipa parou um pouco, e enrolou o cigarro de cujo pensamento a lógica o afastara. — O regímen liberal, continuou sem acender o cigarro, é já uma quebra de continuidade governativa. Até 1820, e quaisquer que fossem as vicissitudes da nossa política interna, uma coisa permaneceu firme e contínua — o facto de que o poder todo residia essencialmente no Rei. O regímen liberal manteve o Rei, mas transferiu o poder para a tal "nação". Propriamente falando isto não é manter o rei, nem manter continuidade nenhuma, pois o Rei não é separável do seu poder, e, não o sendo, não há continuidade desde que se faça a separação. Mas, enfim, isso agora não importa, e é um outro assunto... O regímen liberal, repito, manteve o Rei, e assim, na linha de argumento que nós estamos considerando, poderia alegar como manutenção de continuidade a manutenção da Monarquia. A revolta republicana o que fez? Manteve continuidade com o regímen liberal naquilo que nele, perante este argumento de continuidade (que é o que estamos considerando, e não outro), representa ruptura de continuidade. Como a continuidade tem que ser contínua, para que possa ser invocada como continuidade e chamada continuidade, vem isto a dar em que a República continuou o liberalismo naquele ponto em que ele não continuou nada, Isto é, em que, perante o argumento da continuidade, era ilegítimo. Em outras palavras, a República, perante este argumento da continuidade, não é senão o regímen liberal elevado à injustificação absoluta. — Bravo! — exclamou o coronel Bastos, quase caindo do seu banco. Isso é que é argumentar! O Gomes acendeu finalmente o seu cigarro adiado. Depois voltou-se para o Mendes, e um momento lhe passou nos olhos uma luz subtil de manha irónica. — Quer dizer, amigo Mendes, disse ele sorrindo, ainda há uma espécie de continuidade que os senhores poderiam invocar, e que não é nem a continuidade do regímen aparente, nem a continuidade do regímen real. Os senhores poderiam invocar a continuidade de maneira de governar.. — Será essa que os senhores quererão invocar?... — "Maneira de governar" como? interrogou o Mendes. — Da seguinte forma... Os governos monárquicos eram incompetentes e corruptos, o sistema eleitoral monárquico incompetente e corrupto, o governo do país, sob a Monarquia, era uma oligarquia de partidos governando à parte da nação e contra a nação. (Estou-me servindo de asserções dos senhores, sem as discutir, porque estou argumentando pelos senhores.) Ora os senhores podem alegar que não representam uma quebra de continuidade porque continuam a governar com incompetência e corrupção, que continuam a fazer eleições com competência e corrupção, e que continuam a ser uma oligarquia de partidos (ou de um só, mas não faço caso dessa pequena falha no seu argumento) que governam à parte da nação e contra ela. Não sei se querem que eu considere também este argumento... O Mendes, num gesto brusco, pôs em meio-risco um vaso tapado com seringas de diversas espécies. — Isso é uma brincadeira! exclamou irritado. — Bem: o caso é consigo... Então abdica do argumento? — O argumento não é meu; não tenho que abdicar dele... — Não é seu mas é dum argumentador hábil que falasse por si... Em todo o caso, há para ele uma resposta a sério... Vou refutá-lo. — Homem, para quê? interpôs o Canha. — Diga, diga, ó Gomes! pediu o coronel puxando por um charuto e por mais contentamento. — Vou refutá-lo, amigo Canha, por duro dever de raciocinador. Tenho por obrigação pôr todas as hipóteses possíveis, e refutar as que considere falsas, que neste caso das justificações possíveis da República, são todas. Mas isto vai depressa... O caso é este... — Ora adeus! — exclamou o Mendes, num gesto parado de quem vai a sair. — É claro, prosseguiu o Gomes Pipa, que uma legitimação pela imoralidade é impossível, e por isso, realmente, o argumento é improcedente e absurdo. Mas, admitindo mesmo que o não seja, é improcedente até na espécie em que se estabelece. Para continuar a imoralidade convém alterar o menos possível as condições de imoralidade; ora fazer uma revolução é, pelo menos, introduzir uma perturbação no estado, perturbação necessariamente seguida, como foi, de diversas outras perturbações. Ora para comer tranquilamente à mesa do orçamento o essencial é essa mesa não estar em riscos de ser arrancada aos comensais. A perturbação é, portanto, incompatível mesmo com o propósito de imoralidade. Dir-se-á que os republicanos não poderiam facilmente apoderar-se do poder, e comer eles só, sem afastar primeiro os outros que lá estavam. Nesse caso, mandava a boa imoralidade que se juntassem a um partido dos outros, que, dada a força que levariam consigo, de bom grado lhes pagaria a adesão. Ou então formassem um partido à parte, dentro da Monarquia, e, valendo-se, para fins de simples ameaça, da força que puseram em prática na revolução, conquistassem efectivamente o poder para eles só e para o jantar em família. E, se se alegar que não tinham força para essa conquista, sem ser pelo processo revolucionário, resulta que a sua força era fictícia, podendo vencer só com o golpe de audácia e de surpresa, de modo que até aqui, e no meio deste triste argumento, se vê bem que o movimento não tinha carácter nacional, nem mesmo imoral, e que nem a continuidade da corrupção e da incompetência pode ser invocada, apesar de todas as aparências, pelos republicanos. — Está bem, homem, está bem, disse, irritado, o Mendes. Para que está V. a perder tempo com essa brincadeira? — Para disfarçar um sofisma, interveio o Canha. O nosso Gomes, não sei se os senhores repararam? sofismou todo este argumento da continuidade, e por isso convém-lhe acabá-lo numa espécie de desvio de brincadeira... — Sofismei o argumento? — Sim senhor, sofismou. — E em que é que o sofismei? — No seguinte... A continuidade, que se pode exigir à República que invoque para alegar a sua legitimidade, ou a sua normalidade constitucional ou governativa, não é, amigo Gomes, a continuidade com a monarquia, e muito menos com a monarquia absoluta, etc., etc. A continuidade republicana tem que contar-se desde que se estabeleceu a República; é a continuidade do regímen consigo mesmo e adentro de si mesmo, e não com outros regimens, e fora de si... Lá nos outros argumentos, o da aceitação nacional, e o da justificação eleitoral, foi V. muito bem, mas aqui teve que sofismar, que tirar o problema do seu verdadeiro campo, para simular o triunfo... O Mendes, o Evaristo e até o Justino, em geral atado ao seu silêncio, sorriram ou riram desta objecção oportuna. Mas o Gomes Pipa, ao contrário do que seria de esperar, sorriu também, uni sorriso vasto e contente. O coronel Bastos, que o fitava atento, carregou a expressão de atenção. — Contra essa objecção, disse o Gomes, esfregando as mãos, há nada menos de cinco respostas. Em primeiro lugar, não se trata de simples continuidade, mas de continuidade como sinal de legitimidade; ora a continuidade de uma coisa consigo mesma não pode determinar, de si, a legitimidade, porque assim tudo neste mundo era legítimo, visto que tudo, enquanto dura, dura, e é pois contínuo consigo mesmo. — Em segundo lugar, não se trata de continuidade como simples duração, mas, como Os senhores mesmos disseram, de maneira de durar. Se se tratasse de continuidade como simples duração, então é essencial que essa continuidade não fosse nunca interrompida, que não tivesse havido nunca movimento revolucionário algum, com carácter vitorioso, a cortar a vida da "república original", em outras palavras, que não houvesse descontinuidade. — Em terceiro lugar, reparem que estávamos considerando a justificação irracional da República; a continuidade de que se trate, pois, para esta justificação, é uma continuidade nacional, e não uma continuidade de regímen ou de partido. Ora, como a nacionalidade não começou em 5 de Outubro de 1910, a continuidade nacional também não começa aí. E se há uma continuidade partidária e não nacional, há uma continuidade partidária e anti-nacional, e esse partido está contra a nação. — Em quarto lugar, trata-se de continuidade governativa, e como a essência do governo é dominar, e uma das condições de dominar é reprimir revoltas e movimentos adversos, desde que haja ou movimentos adversos constantes, ou um só vitorioso, não há continuidade de domínio, não há portanto continuidade de governo. — Em quinto lugar, a continuidade constitucional, que é a de que se trata, é uma continuidade de ordem e a "República Constitucional" nem tem mantido a ordem, nem, quando tem retomado o seu curso, o tem sempre retomado por processos de ordem. E aqui tem, amigo Canha, cinco dedos da mão do argumentador a estrangular a sua objecção... — Magnífico, magnífico! exclamou o coronel, trincando a ponta do charuto como se ele soubesse a raciocínio. — Quanto mais o apertam, mais V. se desembaraça. O Gomes apontou o seu corpo prolixo. — Quando me enlaçam, caio em cima deles... disse modestamente. Fez-se uma pausa ligeira na conversa. Entrara um freguês que se devolveu à rua com uma garrafa de água de Vidago. O coronel Bastos acendeu, sorrindo, o seu charuto. Depois, indo o freguês a sair, voltou-se para o Gomes com uma voz interessada: (...) s.d. Da República (1910 - 1935) . Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979. - 108.

via

sexta-feira, 22 de junho de 2012

sábado, 16 de junho de 2012

Tom Zé - Augusta, Angélica e Consolação



Augusta, graças a Deus, graças a Deus,
Entre você e a Angélica
Eu encontrei a Consolação
Que veio olhar por mim e me deu a mão.

Augusta, que saudade,
Você era vaidosa, que saudade,
E gastava o meu dinheiro, que saudade,
Com roupas importadas e outras bobagens.
Angélica, que maldade,
Você sempre me deu bolo, que maldade,
E até andava com a roupa, que maldade,
Cheirando a consultório médico,
Angélica.

Augusta, graças a deus...

Quando eu vi
Que o Largo dos Aflitos
Não era bastante largo
Pra caber minha aflição,
Fui morar na Estação da Luz,
Porque estava tudo escuro
Dentro do meu coração.

http://www.youtube.com/watch?v=2J23pwlDv7A&feature=related

BACH TO AFRICA




http://www.youtube.com/watch?v=9sjXfkSDciI&feature=share

sábado, 9 de junho de 2012

quarta-feira, 30 de maio de 2012

33

Coincidências sobre o Número 33

- Jesus na cruz com 33 anos.
- A coluna vertebral humana tem 33 vértebras.
- Os LPs (discos de vinil - quem se lembra???) tinham 33 rotações por minuto
- Para a maçonaria o grau 33 é uma honraria de elite re
servada a um pequeno grupo altamente qualificado.
- 33, em binário, é 100001
- 33, em algarismos maias, tem um desenho muito parecido com uma pirâmide.
- O armistício, ou seja, o fim da primeira guerra mundial foi em 11 de novembro, as 11 da manhã. Ou seja, três 11. (3x11=33)
- O número 33 representa o magnetismo.
- Hitler matou-se (segundo a lenda) exatamente as 3:30 da tarde.
- O primeiro templo de Salomão tinha trinta e três anos de existência quando foi pilhado pelo rei Sisaque, do Egipto. Detalhe: o templo era um cubo, medindo trinta e três pés e um terço.
- O Livro Tibetano dos Mortos fala dos trinta e três céus governados por Indra e os trinta e três governados por Mara.
- David reinou 33 anos em Jerusalém: "E foram os dias que reinou sobre Israel, quarenta anos; em Hebrom reinou sete anos, e em Jerusalém reinou trinta e três." [1 Crônicas 29:27]

Balanescu Quartet - Wine's so good

http://www.youtube.com/watch?v=mpG1UaeIIj0&feature=related

You and I

via http://conversa2.blogspot.pt/

segunda-feira, 16 de abril de 2012

terça-feira, 13 de março de 2012

Lambchop - Nice Without Mercy



http://instantespossiveis.blogspot.com/


http://duvida-metodica.blogspot.com/

http://www.youtube.com/watch?v=zYk5YQwVFx4&feature=related


http://transparenciapocoverde.blogspot.com/search?updated-max=2011-09-27T06:31:00-07:00&max-results=2

http://www.blogger.com/profile/08684685426655280880

sexta-feira, 9 de março de 2012

Tom and Jerry




http://www.youtube.com/watch?v=yIiOnbDEWNU&feature=related







http://www.youtube.com/watch?v=Hv4Wo28l48Y&feature=related

domingo, 4 de março de 2012

sábado, 3 de março de 2012

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

domingo, 5 de fevereiro de 2012

The Joy of Books



via
http://www.mamamia.com.au/entertainment/secret-life-of-books-beautiful-stop-motion-bookstore-shenanigans/

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Give Me All Your Luvin




http://www.youtube.com/watch?v=cItHOl5LRWg

Petrus Castus - Pátria Amada




Petrus castrus
Album: Mestre
Musica: Pátria Amada

Letra:
PÁTRIA amada, PÁTRIA amada,

Não sei que te diga ou conte

Para além do que se adivinha.

PÁTRIA sem água encanada

Onde as mulheres vão à fonte

Para encher a cantarinha.




PÁTRIA amada, mas de boca,

Que não temos coração,

PÁTRIA da indústria pouca

Por menos educação.

PÁTRIA do fado e dos toiros

Da bola e da emigração

Esperando plos cabelos loiros

De El-Rei D. Sebastião




PÁTRIA amada, PÁTRIA amada

Não sei que te diga ou conte.

Se esta coisa é orquestrada




Lá vou eu andar a monte! [5x]

http://www.youtube.com/watch?v=yLqup0uyGF4&feature=related

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore (2011)






http://www.youtube.com/watch?v=Adzywe9xeIU




http://www.elpais.com/articulo/economia/inversores/ceban/Portugal/temor/contagio/griego/elpepueco/20120130elpepueco_10/Tes

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Abdullah Ibrahim - Mannenberg



Abdullah Ibrahim (Dollar Brand)

Album: Voices of Africa
Track 5: Mannenberg

http://www.youtube.com/watch?v=tJw6weFdJOw&feature=related

domingo, 22 de janeiro de 2012

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Parenthetical Girls - Careful Who You Dance With

Parenthetical Girls: The Privilege (Official Video)

Parenthetical Girls - A Song For Ellie Greenwich



http://www.youtube.com/watch?v=h19KnjDqS5M

Parenthetical Girls "Evelyn McHale"




http://www.youtube.com/watch?v=_k8NR-JMajQ

Four Eyed Monsters






Four Eyed Monsters - 71 minute Feature Film
0:15:00
http://www.youtube.com/watch?v=k8rRFFi_stY

Poema - Sinais... - Euler Luther





"Poema com imagens, declamação e musica para encantar a alma com emoções. Veja, ouça, leia e entregue-se ao sabor poético da vida!"

Sinais Siameses Criam Elos Salutares

Bom é palavrar a genialidade e a diversidade humana.
Na odisséia do saber, plana suave o pensamento flexível,
Ideias permanecem vivas ás luzes dos lampiões de porcelana.
Persianas abrem e arejam idealmente a imaginação possível.

E nos segundos em que o tempo laça a bela luz humana
Torna-se eterna a lanterna que ilumina a taça incrível
Guardiã das ideias pulsáteis que dão inspiração acendível
Para sublimar senciências transcritas em palavras enobrecidas.

Nos pergaminhos que abrigam almísticas essências literárias,
Permitem que a sapiência transponha os limites seculares
Para ligar todas as gerações em conhecimentos exemplares.
Na transparente visão, sentidos claros se comungam plenos,
E realísticas trocas de sinais siameses criam elos salutares.

Correntes de considerações maciças criam pontes móveis,
A mente segue as linhas determinadas pelas intenções
E o poder da realização humana se materializa sem ilusões
Nas artes concretas, no divino abstrato, nas leis corretas.

À noite os mantos artificiais acendem-se pelo planeta,
São Luzes dos feitos humanos á luz da criatividade humana.
Uma civilização grandiosa de fascinante tecnologia beta,
Repleta de detalhes, sem falsa silhueta, revela mosaicos suntuosos,
De softwares formidáveis para inteligentes homens luminosos.

As definições do passageiro preso pelas janelas do trem urbano
Prendem-se á suave chuva de traços á esboçar novas estruturas
Para perpetuar a continuação das invenções do homem urbano.
Símbolos matemáticos unem-se as frases de densa elucidação,
Emblemas cromáticos possibilitam tangível resolução,
Magicamente tudo são objetos para a laboriosa imaginação.

A arte da pedra filosofal é transformar em ouro ás vista...
De um bel-construtor preso ás teias de sedas da criação.
Ele entende a importância das concepções e clareia sua noção
Todo o brilho das ideias que ilumina toda a concreta razão.

Que o vento circule átomos em torno da criação humana
Que seja mantido o equilíbrio dessa matéria, que nada á profana."

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Coisas brilhantes

KOAN Sound - Meanwhile, In The Future

Jane Fonda

Nesta geração, foram adicionados à nossa esperança de vida 30 anos extra -- e estes anos não são simplesmente uma nota de rodapé ou uma patologia. No TEDxWomen, Jane Fonda pergunta como podemos pensar sobre esta nova fase das nossas vidas.



http://www.ted.com/talks/lang/pt/jane_fonda_life_s_third_act.html



http://shepushesamadwhip.blogspot.com/

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Antero de Quental

DIVINA COMÉDIA

Erguendo os braços para o Céu distante
E apostrofando os deuses invisíveis,
Os homens clamam: - «Deuses impassíveis,
A quem serve o destino triunfante,

Porque é que nos criastes?! Incessante
Corre o tempo e só gera, inextinguíveis,
Dor, pecado, ilusão, lutas horríveis,
Num turbilhão cruel e delirante...

Pois não era melhor na paz clemente
Do nada e do que ainda não existe,
Ter ficado a dormir eternamente?

Porque é que para a dor nos evocastes?»
Mas os deuses, com voz inda mais triste,
Dizem: - «Homens! porque é que nos criastes?!»



QUENTAL, Antero de. Sonetos. Lisboa: Sá da Costa, 1962, p.176.

via
http://antoniocicero.blogspot.com/

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

CARLOS MARIN ROMEO Y JULIETA BALADA DE LA REINA MAB




http://www.youtube.com/watch?v=J3af4hQF_vM

Gabriel Byrne in 2011





via
http://intreatmentfans.blogspot.com/2012/01/gabriel-byrne-2011-year-in-review-video.html?spref=fb

The Builders & The Butchers - All Away




"All Away"
The Builders & The Butchers
Dead Reckoning - 2011

The Builders and The Butchers - Black Elevator





http://www.youtube.com/watch?v=SWYg_AYJTis&feature=related

The Builders and the Butchers - We All Know the Way

The Builders and the Butchers - Until Morale Improves, the Beatings Will...

Gabriel Byrne does his best Jedward impression!






http://www.rte.ie/player/#

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

ANA LAINS & ROGÉRIO CHARRAZ - Taverna dos Trovadores - SINTRA - 2011.wmv



2011 in 45 from prof.jmas on Vimeo.



may 2012 be more peaceful and less destructive...

http://vimeo.com/33293511

http://www.youtube.com/watch?v=hXYuL0TJR60&feature=player_embedded